O Mundo em Bitcoin

Uma Moeda de Bitcoin

Recentemente, conversei com algumas pessoas sobre bitcoin ou outras moedas digitais. Concluí que muita gente não entende direito o tema e confunde bitcoin (que seria análogo a ouro) com dinheiro de governo (que é, no fundo, um título de valor).

Para não ter que escrever ‘criptomoeda’ toda hora, vou referenciar a bitcoin como sendo o coletivo de todas as criptomoedas.

Como funciona?

Bom, em primeiro lugar, peço perdão aos meus amigos da tecnologia, pois vou tomar uma licença poética para simplificar a explicação, sem prejuízo a ideia final, que é avaliar o impacto na vida das pessoas. Será uma explicação de como a coisa funciona, em poucas linhas: a geração de novas bitcoins é feita na base do chute certeiro. Um sistema chuta um número e adiciona ao conteúdo do histórico de transações e aplica uma série de operações matemáticas (algoritmo de hashing) e deve chegar a um determinado resultado numérico. Toda vez que um sistema acerta, ele ganha um premio em bitcoins.

Quanto mais vezes o sistema chutar, mais chances de acertar. O análogo seria uma mina de ouro: quanto mais alguém minerar, mais cascalho irá lavar e maiores as chances de encontrar ouro. Duas coisas importantíssimas saem deste conceito:

  1. Ninguém pode simplesmente dizer que existem mais bitcoins que as verificadas pela rede. Nem por lei, nem por decreto, nem cheque assinado e nem com uso de força. A única coisa que a rede bitcoin conhece são as bitcoins que ela conhece ou as que entram em um chute acertado.
  2. Quanto maior o poder de processamento (e consumo de energia), maiores as chances de ser premiado.

Alguma Teoria

Com base nisso, ainda precisamos definir alguns conceitos que as pessoas acabam por esquecer ou não se importam ou não prestam atenção. Agora meu perdão é para meus amigos economistas e filósofos, pois vou reduzir em muito a coisa toda para chegar ao alvo, que é avaliar o impacto na vida cotidiana.

Dinheiro Estatal

Dinheiro estatal é o dinheiro que o governo imprime. Não no sentido físico de impressão: basta ele emitir uma autorização a um banco de fazer mais empréstimos e pronto, aumentou o dinheiro em circulação.

Como todo dinheiro, seu valor está diretamente associado a quanto as pessoas acreditam nele. Eu já comentei várias vezes que o que dá real valor a uma moeda é a confiança que as pessoas tem no valor dela. Quando um governo é reconhecido por ter hábito de imprimir dinheiro a moda maluca, essa moeda tem seu valor corrompido por este próprio governo e, portanto, passa a valer menos. Por isso o Real vale menos que o Dólar.

Mas o que confere valor a um dinheiro de Estado?

  1. A necessidade de você ter dinheiro Estatal para pagar impostos Estatais
  2. Os serviços que este governo presta
  3. As reservas que ele tem (em dinheiro estrangeiro, minério e sua própria economia)

Dinheiro Não-Estatal

As pessoas já convivem com dinheiro não estatal e não prestaram atenção. Milhas, Dotz, pontos do cartão de credito, enfim, tudo isso é moeda não estatal. Ela tem um valor, ela tem poder de posse e ela tem confiabilidade.

Se eu emitir um papel dizendo que trabalharei 2 dias cortando grama para alguém, essa pessoa ir na vizinha trocar esse papel por um pudim, isso é dinheiro. Mas em algum momento, isso tem que virar um bem ou serviço.

Outro exemplo de dinheiro não-estatal é o vale-troco de uma padaria. Se no lugar do “vale-troco” você receber um “vale-mercadoria”, caso a mercadoria tenha um reajuste de preços, você irá ter lucrado com o câmbio (mas isso é outro assunto).

Dinheiro e Títulos

Hoje temos uma mistura do que é dinheiro e o que é títulos. Até nos meus exemplos acima a coisa se mistura. Sempre que o governo emite títulos (se não me engano, os títulos do Brasil são em Real), ele está basicamente aumentando a quantidade de dinheiro (Real) em circulação. Toda vez que imprime dinheiro, autoriza um banco a fazer empréstimos sem lastro, tudo isso aumenta a quantidade de dinheiro em circulação.

Em um mundo bitcoin, dinheiro é bitcoin. Tudo o que o governo faz seriam títulos que equivalem a bitcoin, porém, se o governo tiver menos bitcoins em sua carteira que os títulos que possui, ele quebra. Em outras palavras, o governo para de emitir dinheiro e passa a emitir apenas títulos; quanto maior a confiança em um governo, mais próximo o valor do título fica ao do bitcoin verdadeiro (que é o que tem hash na rede).

Um outro exemplo de título que uma pessoa emite é um cheque pessoal. Cheque não é dinheiro. É um titulo que representa dinheiro. A diferença então é que dinheiro tem seu valor baseado na confiança das pessoas e título tem seu valor associado a algo, inclusive dinheiro (exemplo: titulo vale-corta-grama).

Inflação

A inflação é o aumento de capital em circulação. Não é algo completamente ruim: quando uma bitcoin é criada, houve inflação. O problema é que hoje, a inflação é controlada pelo governo (governo privado ou estatal, tanto faz) e isso faz com que dinheiro e títulos sejam a mesma coisa: portanto, invariavelmente, o estado acaba confundindo a economia.

No mundo Bitcoin, A inflação deixa totalmente de ser algo controlado por qualquer governo. Ele pode emitir uma infinidade de títulos e inundar o mercado com eles. Porém, quanto maior a quantidade de títulos, maior o lastro que este governo teria que ter para que tais títulos tenham valor, senão, seriam mais análogos a cheques sem fundos.

O governo perde, totalmente, a habilidade de inflacionar o mercado com dinheiro, mas pode entupir as pessoas com títulos. Certamente, conhecendo os estados, eles vão receber em dinheiro e pagar em títulos…

E a vida Cotidiana?

Agora finalmente chegamos no assunto que eu queria. Vamos avaliar as transações financeiras das pessoas e como vivem, para entender porque bitcoin vai revolucionar o mundo, mas não vai mudar a vida cotidiana das pessoas.

Salário

Trabalhe um mês inteiro e no final dele, seu empregador irá transferir bitcoins da carteira dele para a sua. Você também pode aceitar receber em títulos de banco (explico abaixo isso), caso queira. Eu preferiria em bitcoin.

Pagamentos Normais

Você vai a uma loja, escolhe o produto, acessa sua carteira digital por algum meio, transfere uma quantidade de dinheiro para outra carteira digital, a transação é reconhecida e o lojista recebeu dinheiro. Pronto.

Pagamentos em Cartão de Débito

O melhor MESMO é pagar direto com dinheiro de verdade. Agora, se o cliente tem seu dinheiro em banco (e no caso, só tem títulos de vale-troco daquele banco), o vendedor pode receber de duas formas seu pagamento:

  1. Recebe um título da operadora de débito em sua conta também em banco
  2. Recebe dinheiro em uma transferência de bitcoins direto na sua carteira

Porém, para o usuário do cartão, nada muda, caso tenha dinheiro no banco.

Pagamentos em Crédito

Igual ao de débito.

Porém, ao pagar a operadora de cartão, pode ser com títulos do banco ou dinheiro de verdade e no lugar de pagar transação a transação, paga-se tudo no final do mês. Vai depender muito mais da operadora de cartão… E eu acho que vão preferir dinheiro de verdade.

Banco

Não vai existir motivo para ter conta em banco para guardar dinheiro (no sentido de cofre), como são hoje as contas-correntes. Você vai usar sua carteira digital para isso, através de computador, smartphone, etc. E fazer pagamentos direto por lá.

Eu só vejo um motivo para usar banco: receber juros por investimento. Exemplo: você transfere dinheiro ao banco e permite que eles emprestem o SEU dinheiro a terceiros e cobrem uma taxa por administrar isso para você e te paguem os juros do SEU empréstimo.

Lembrando que, ao fazer isso, você está trocando dinheiro de verdade por título do banco (igual ao vale-troco de padaria) dizendo que você tem direito a “n” bitcoins. É realmente importante confiar no banco ao fazer isso.

Mas e se o banco quebrar? É o risco de ganhar dinheiro sentado. No pain, no gain.

Impostos

Como a maioria das pessoas não vai ter dinheiro aplicado em banco, o governo perde muita da rastreabilidade do dinheiro que um cidadão possui. Se todo mundo passar a operar em dinheiro vivo, fica bem mais difícil para o governo saber exatamente onde as pessoas estão gastando e, portanto, mais difícil de rastrear.

Para aumentar a arrecadação, o estado vai precisar investir em fiscalização. Isso custará dinheiro. Como qualquer investimento, deverá avaliar se o retorno é positivo ou negativo. Chuto que não se pague e restará ao estado prover melhores serviços e ter melhor governança para que seus títulos tenham algum valor.

Invariavelmente o estado enxuga.

Em resumo:

  • Todos os impostos relacionados a transferência de dinheiro somem. Doações, IOF e etc.
  • Todos os demais impostos ficam como está, porém, ficará complicadíssimo rastrear tudo sem tirar extratos bancários.

E porque não migrar tudo hoje?

Eu sou defensor da ideia de uma moeda não estatal. Porém, a implementação técnica do bitcoin não me agrada. Eu vou pular para uma moeda digital quando:

  1. No lugar de copias da cadeia de transação, cada um que queira pleitear ser premiado deve ceder espaço em disco a ser administrado pelo sistema automaticamente
  2. O mesmo para processamento.
  3. De maneira meritocrática: quem contribui mais, leva mais. Neste caso, prefiro o share proporcional que a disputa / sorte.
  4. Algum sistema operacional distribuído que controle os nós automaticamente ou um sistema de voting automático com eleição de nós centrais substituídos automaticamente
  5. Tenha proof of work e proof of stake, de maneira que seja interessante se manter na rede.

E porque tudo isso?

Espero ter ajudado um pouco a quem investiu tanto tempo nisso. Eu realmente recomendo uma lida na Wikipedia, em alguns 101 de economia (que deveria ser matéria de segundo grau, no meu ponto de vista). Tudo isso ajudará a entender e fazer uma análise mais firme do que nos aguarda.

Eu acredito que é uma mudança que vem e não vai voltar. Talvez iremos conviver com dinheiro estatal e bitcoins por muito tempo, talvez surjam várias moedas, talvez vamos mudando de “dinheiro” conforme a tecnologia avança, pois o que é difícil de processar hoje ficará fácil no futuro e, portanto, novas moedas tornarão-se necessárias.

Por fim, não foi um artigo tecnicamente apurado. O objetivo é dar uma ideia geral, sem detalhar demais ou entrar em longas questões filosóficas; o objetivo é demonstrar que por mais que aparentemente mude tudo, no fundo, muda muito pouco.

Creative Commons License

Esta obra está licenciado com uma Licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional.

Sobre rftafas 183 Artigos
Ricardo F. Tafas Jr é Engenheiro Eletricista pela UFRGS com ênfase em Sistemas Digitais e mestre em Engenharia Elétrica pela PUC com ênfase em Gestão de Sistemas de Telecomunicações. É também escritor e autor do livro Autodesenvolvimento para Desenvolvedores. Possui +10 anos de experiência na gestão de P&D e de times de engenharia e +13 anos no desenvolvimento de sistemas embarcados. Seus maiores interesses são aplicação de RH Estratégico, Gestão de Inovação e Tecnologia Embarcada como diferenciais competitivos e também em Sistemas Digitais de alto desempenho em FPGA. Atualmente, é editor e escreve para o "Repositório” (http://161.35.234.217), é membro do editorial do Embarcados (https://embarcados.com.br) e é Especialista em Gestão de P&D e Inovação pela Repo Dinâmica - Aceleradora de Produtos.
0 Comentários
Inline Feedbacks
View all comments