O Departamento 5

Mais um da série de contos corporativos...

Havia em uma corporação, destas multinacionais, com prédio grande, envidraçado e imponente, um departamento todo especial ao qual muitos chamavam de departamento 5. Era um departamento que ficava, como já era de se imaginar, no quinto andar do prédio da sede companhia e, por esta questão lógica, havia recebido este nome.

O departamento 5 era ao mesmo tempo um orgulho e um segredo na companhia. Todos os outros departamentos eram conhecidos por nome: o RH, o Marketing, o Vendas, o Pesquisa e Desenvolvimento, o de serviços gerais, enfim, todos. Só o departamento 5 era friamente conhecido como pura e simplesmente departamento do quinto andar. E nem mesmo esses nomes eram oficiais. Acontece que nunca tentaram dar um nome ao departamento 5.

Não era só o nome que não era representativo. Ninguém sabia, de fato, o que era ou para que servia o departamento do quinto andar.

Luiz Benassi, presidente, CEO, fundador, chairman da companhia e, principalmente, maior acionista do grupo, sempre dizia que o departamento 5 estava ali por suas importantes funções, às quais ele mantinha a sete chaves. Benassi inclusive ameaçava: “se o departamento 5 sumir, essa companhia acaba.” As vezes, quando estava de humor elevado, Benassi dizia que “o departamento 5 é fundamental. Devemos nosso sucesso à ele.”

Benassi sempre afirmou que o departamento 5 era mais importante que ele próprio.

Ninguém sabia direito quem eram os funcionários do departamento 5. Muito menos o que eles faziam. As vezes um deles aparecia em outro departamento requisitando alguma coisa: sempre coisas típicas. Um crachá que deveria ser renovado, mais copos plásticos para o bebedouro, canetas, um pano para limpar um café derramado. Coisas assim. Eventualmente, quando um funcionário da companhia cruzava pelos corredores com alguém do departamento 5 e tentava puxar assunto, além de um cordialíssimo cumprimento, ouvia o outro dizer: “preciso ir. Estamos em uma correria.”

O departamento 5 estava sempre em alguma correria.

Envolto em mistério, o departamento 5 seguia com as suas atividades. Ninguém entrava no departamento 5, a não ser os funcionários do próprio departamento. O que se via, nos rápidos abrires e fechares da porta do departamento, quando por verdadeiro lance de sorte se visse algum funcionário entrando ou saindo, era uma mesa de recepção vazia, uma parede com um enorme número 5. A porta era uma porta destas modernas, onde só se entra colocando o polegar no sensor biométrico. Nem mesmo Benassi podia entrar no departamento 5, por ordem direta e resoluta dele. Quando apresentava a companhia a altíssimos investidores e lhe perguntavam do famoso (muitas pessoas já ouviram falar do tal “departamento 5”), Benassi dizia:

Isso aqui não é para circulação. Nem eu posso entrar aqui. Ordem minha e irrevogável. Nem em caso de vida ou morte.

E isso estava no estatuto da companhia. Mas o que mais gerava polêmica sobre o departamento 5 era o orçamento. O orçamento do departamento 5 era tão sigiloso quanto o resto do departamento. Havia apenas dois únicos itens descritos:

  • “custos gerais do departamento do quinto andar.”
  • “custos de pessoal do departamento do quinto andar.”

E estes dois itens, somados, custavam praticamente metade da companhia. Os demais acionistas da companhia, que a propósito era extremamente lucrativa, ficavam furiosos quando Benassi lhes apresentava os números. Benassi sempre aprovava o orçamento do departamento 5, sem questionar. Havia até quem dissesse que ele nem sabia exatamente o que assinava, só sabia que era importante, afinal, era uma requisição do departamento 5. E isso gerava sempre a mesma conversa com os demais acionistas:

A empresa já possui RH, Marketing, Vendas, Fábricas. Ela é completa. Para que serve este departamento 5? Ele diminui nosso lucro!

Ao que Benassi replicava, as vezes em um tom rude, sem entender o porquê de tanta ladainha sobre o “obviamente importante e fundamental departamento 5”:

Afff, o departamento 5 é muito importante. Vocês querem arriscar cortá-lo?

E sempre se fazia um silêncio. Ninguém queria encarar a bronca e assumir sozinho os riscos de acabar com o departamento 5. Provavelmente, o pensamento corrente na cabeça deles deveria ser “vai que o Benassi está correto e a companhia vai para o buraco sem o departamento do quinto andar?” Não, eles simplesmente não queriam correr o risco. Por outro lado, Benassi, sozinho, assumia o risco em não só manter o departamento mais custoso da companhia, como de fazê-la lucrativa apesar disso.

Portanto, dado o saldo positivo, nada mudava. Havia, também e conforme a rádio peão, o boato que nem mesmo Benassi, o maior apadrinhador do departamento, realmente sabia o que acontecia naquele andar. Na verdade, talvez nem ele mesmo se recordasse como exatamente o departamento 5 fora criado. Benassi já era senhor idoso, há muitos anos no comando da companhia. Por certo, a única coisa que Benassi recordava era da vital importância do departamento do quinto andar, o indispensável departamento 5, para a companhia. E foi assim por todo o final da carreira de Benassi.

Foi numa triste manhã de quinta-feira que Benassi veio a falecer. Saiu até histórias de suas conquistas pela companhia, em matéria de jornal. Durante o velório, não faltaram funcionários para o homenagearem. Até mesmo o pessoal do departamento 5, pela primeira vez vistos em grupo, compareceram. Deixaram flores e saíram, afinal, provavelmente estavam em alguma correria.

Por anos se falou da capacidade administrativa de Benassi, que foi elogiada e exaltada, bem como muitos alunos de administração escreveram teses sobre seu estilo de comando e suas ideias. O departamento 5 perdeu seu maior patrocinador e, era claro, a companhia deveria escolher um novo presidente.

Leo Mediano, vice presidente de contas e controller principal da companhia, maior opositor à existência do departamento 5, assumira o cargo de CEO por indicação do conselho. Sua primeira medida foi iniciar uma batalha contra o sigilo do departamento 5. Quando os encontrava, interpelava os funcionários do departamento 5, querendo saber o que eles faziam e para que o departamento servia. Todos eles agiam da mesma maneira: cumprimentavam-no cordialmente e, sem dizer nenhuma outra palavra, encerravam a conversa com “preciso ir, estamos em uma correria.” Mediano não avançou nada além disso por alguns meses.

Isso começou a irritar Mediano, que era acostumado a ter tudo o que desejava na hora em que desejava. Conforme foi se repetindo, ele perguntando e ninguém lhe respondendo, os funcionários do departamento 5 passaram a encerrar a conversa do mesmo jeito que sempre fizeram, porém, agora, sob os berros e sob as ameaças de Mediano. Aos poucos, os integrantes do departamento 5 passaram a evitar o elevador, onde muitas vezes ele os aguardava. Passaram a usar as escadas. Mediano, quando descobriu isso, passou a atocaiar os funcionários do departamento, em geral, pelo segundo ou terceiro andares. Sempre acuando-os e ameaçando-os aos berros.

Aos poucos os funcionários, já raramente vistos do departamento 5 desapareceram. Corria o boato que passaram a trabalhar em horários alternativos, para evitar que Mediano os abordasse. Foi então que Mediano arrumou o pretexto de que ouviu, obviamente mentira, um dos funcionários do departamento 5 chama-lo de “imbecil”. Por isso, resolveu por fim de vez naquilo que considerava o maior desrespeito à sua pessoa. Cortou o departamento 5 sem sequer saber o que acontecia lá. Não interessava mais. Era uma bruta falta de respeito.

No outro dia, após o decreto de Mediano, quando os curiosos foram, enfim, descobrir o que fazia o departamento 5, encontraram o quinto andar estava vazio. Até mesmo o controle da porta havia sumido, deixando um amplo salão de mesas vazias abertas para acesso de todos. A única coisa que ficou eram o número 5 da parede e a mesa de recepção, que provavelmente estavam ali desde antes do departamento ser formado e nunca servira para nada.

Um mês depois, a companhia decretou falência.

Creative Commons License

Esta obra está licenciado com uma Licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional.

Sobre rftafas 183 Artigos
Ricardo F. Tafas Jr é Engenheiro Eletricista pela UFRGS com ênfase em Sistemas Digitais e mestre em Engenharia Elétrica pela PUC com ênfase em Gestão de Sistemas de Telecomunicações. É também escritor e autor do livro Autodesenvolvimento para Desenvolvedores. Possui +10 anos de experiência na gestão de P&D e de times de engenharia e +13 anos no desenvolvimento de sistemas embarcados. Seus maiores interesses são aplicação de RH Estratégico, Gestão de Inovação e Tecnologia Embarcada como diferenciais competitivos e também em Sistemas Digitais de alto desempenho em FPGA. Atualmente, é editor e escreve para o "Repositório” (http://161.35.234.217), é membro do editorial do Embarcados (https://embarcados.com.br) e é Especialista em Gestão de P&D e Inovação pela Repo Dinâmica - Aceleradora de Produtos.
0 Comentários
Inline Feedbacks
View all comments